Um dos argumentos mais usados em debates
apologéticos, em quaisquer fóruns de debates - cristãos e não cristãos - versa
sobre a questão do julgamento. Boa parte deles é derivada da famosa passagem
bíblica, tratada como se texto de lei fosse: "Não julgueis, para que não sejais
julgados. Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida
com que tiverdes medido vos hão de medir a vós. E por que reparas tu no argueiro
que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como
dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no
teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o
argueiro do olho do teu irmão." (Mateus 7:1-5). Acontece que, como sabemos,
muitos equívocos são cometidos quando alguém tira a passagem bíblica de seu
contexto, e termina por deturpar o ensino bíblico sobre a questão do
julgamento.
1. Da necessidade de
julgar
Afinal, qual a raiz do problema? O ser
humano, até como instinto de autoproteção, começa a colocar - ou até a impor -
freios numa situação de conflito. É, de fato, desagradável uma sensação de
antagonismo, vinda de quem quer que seja. Se a pessoa consegue se armar,
inclusive psicologicamente, é um bom aspecto; difícil é quando a pessoa se sente
acuada, sem ter como enfrentar a força contrária. Restam-lhe alternativas
possíveis: render-se, atacar ou o escape. Render-se fica sem cogitação; atacar
só é possível com as armas certas; daí que lhe vem, até como meio instintivo de
sobrevivência, buscar um escape. Nisso vem a problemática do "não julgar" que,
como colocado pelo argumento da tolerância, não possui qualquer validade, senão
é uma tentativa errônea e grosseira de se fugir de uma questão.
Esse instinto de sobrevivência, em nome da
cordialidade e da tolerância, mascara por vezes uma atitude arrogante de quem
não admite a perda, diante de evidências ou argumentos mais fortes. Escorar-se
numa pretensa base bíblica não conduz a nada, mas acaba sendo uma alternativa
contra quem levanta o argumento e também não está devidamente protegido contra a
"falácia do não julgar". Falácia é um argumento que possui a aparência de
verdade e legitimidade, mas que no fundo esconde uma enorme mentira.
A cordialidade e a tolerância, levada a
limites fora da normalidade, conduz a um comportamento incoerente e insensato. O
crente é levado pelo seu Senhor a provar pensamentos e atitudes, a exercer suas
faculdades mentais para promover uma análise de tudo o que se lhe apresenta aos
olhos. Não fosse assim, Paulo não teria recomendado aos crentes: "Examinai tudo.
Retende o bem" (1 Tessalonicenses 5:21). Em outra passagem, o mesmo Paulo exorta
aos coríntios: "Examinai-vos a vós mesmos, se permaneceis na fé; provai-vos a
vós mesmos. Ou não sabeis quanto a vós mesmos, que Jesus Cristo está em vós? Se
não é que já estais reprovados" (2 Coríntios 13:5). Os crentes de Bereia
examinavam as Escrituras para conferir se o que os apóstolos ensinavam era, de
fato, verdade (Atos 17:11). Jesus mesmo manda que exerçamos nosso discernimento,
examinando as Escrituras (João 5:39). Examinar, analisar, pesquisar, procurar,
são atitudes do intelecto, que precisa exercer sua capacidade de juízo. Julgar,
então, é necessidade de quem caminha com Jesus. Obedece-se aos mandamentos
somente por meio da análise de uma situação real e com o juízo transformado pelo
poder da Palavra de Deus, a fim de se produzir uma atitude. Se o crente não
pudesse julgar, como viveria a realidade dos mandamentos de Cristo? Seria ele
submisso a dogmas, impostos por um deus raivoso e mesquinho, que se preocupa tão
somente em exigir comportamentos diversos de uma civilização, já corrompida pelo
pecado? Entendemos que não. Deus sempre mostra, por toda a Bíblia, que sua
Palavra tem finalidade educativa. Os versículos áureos sobre a importância das
Escrituras demonstram plenamente esse fator: "Toda a Escritura é divinamente
inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para
instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente
instruído para toda a boa obra" (2 Timóteo 3:16-17).
Vê-se, então, que há coerência na atividade
do julgar, inclusive por necessidade de se viver uma vida cristã autêntica, com
plena capacidade de discernimento, orientado em obediência às Escrituras. Outro
aspecto é a condução necessária do crente na atividade julgadora, uma vez que
ele deva examinar todas as coisas e reter o que é bom. Sendo assim, por que
pautar-se numa suposta tolerância e expressão de cordialidade para supostamente
eviatr um confronto?
2. Do julgamento justo
Aparentemente a tolerância ensinada por
Jesus deva ser observada em quaisquer circunstâncias. Cita-se também a passagem
em que Jesus liberta a mulher adúltera, partindo-se do seguinte encadeamento de
ideias: "Jesus condenou quem tivesse pecado e perdoou a adúltera - Ora, Jesus
tem o poder de julgar alguém, e sou pecador - Logo, eu não posso julgar
ninguém". Esse raciocínio também é falacioso. A inferência à primeira afirmativa
não leva em consideração que Jesus usou-se de um julgamento com um importante
adjetivo: "justo". Nisso ele exerceu um julgamento coerente, dada a situação em
que se apresentava a condenação pura e simples de uma adúltera, sendo que seus
algozes cometiam adultério e coisas até piores aos olhos de Deus às escondidas.
O sentido do ensino de Jesus era demonstrar a força do perdão divino a quem
cometeu uma série de pecados, não de produzir apenas um julgamento e execução de
sentença conforme a Lei de Moisés. Caso ele apenas condenasse a adúltera,
demonstrando somente a necessidade da aplicação da lei, que estaria fazendo,
senão uma repetição de atos de pecadores, embora ele mesmo não tivesse pecado?
Seu ensinamento estaria em franca contradição, ainda mais sendo Jesus conhecedor
dos corações de cada um da multidão que se preparava para lapidar a mulher pega
em adultério.
Com isso, havemos de discernir sobre o
julgamento justo. Deus tem sua medida de justiça, e com ela exorta os homens:
Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser
julgado por vós, sois porventura indignos de julgar as coisas mínimas? Não
sabeis vós que havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a
esta vida? Então, se tiverdes negócios em juízo, pertencentes a esta vida,
pondes para julgá-los os que são de menos estima na igreja?" (1 Coríntios 6:
2-4) Em todos os períodos há a certeza de que os santos haverão de julgar, seja
o mundo, os anjos, ou até mesmo as coisas pertencentes a esta vida. O dever de
um santo é julgar. Santo é aquele separado por Deus para constituir um povo
eleito e para exercer, perante todos, as ordens de seu Pai celeste no que este
comandar. Se isso deve ser feito até entre irmãos - versículo 5: "Não há, pois,
entre vós sábios, nem mesmo um, que possa julgar entre seus irmãos?" - quanto
mais no que diz respeito a outros assuntos, conforme a necessidade?
A restrição bíblica que se faz a esse
respeito está exatamente no termo "justo". Julgamento sem justiça produz
injustiça. Se Deus investe os seus santos crentes com a capacidade de a tudo
julgarem, Ele o faz requerendo justiça; caso contrário, não é julgamento que
proceda do Deus cujo nome é Justiça. Deus requer que o homem faça justiça:
"Assim diz o SENHOR: Guardai o juízo, e fazei justiça, porque a minha salvação
está prestes a vir, e a minha justiça, para se manifestar" (Isaías 56:1). Repare
o leitor acerca da importância de se praticar a justiça, a fim de que a própria
justiça divina se manifeste. Não fosse assim, por que Deus incluiria na lei
mosaica o mandamento de não se fazer injustiça no juízo (Levítico 19:15)? O
justo age exatamente como o salmista: "Fiz juízo e justiça; não me entregues aos
meus opressores." (Salmos 119:121). Deus ama a justiça e o juízo (Salmos 33:5);
naturalmente, seus filhos amados haverão de observá-la e exercê-la e, ao agirem
assim, nada mais farão do que a vontade do Pai.
Sendo assim, fazer julgamentos e exercer a
justiça é próprio de quem caminha com Deus, conquanto o faça com a mesma
motivação justa de seu Pai celeste. Se, porventura, o crente distorce a justiça,
e passa a julgar por seu próprio entendimento, sem que haja fundamento baseado
na verdade da Palavra de Deus, ele proferirá um julgamento injusto. Ele se
tornará um hipócrita, que não enxerga as próprias falhas e vê as menores
praticadas por seu irmão, assim como Jesus diz no texto de Mateus 7. Ele se
tornará inimigo da verdade e condenado a suportar o mesmo fardo de justiça que
tentou impor a quem não tinha culpa. Nisso estão as opiniões puramente pessoais,
baseadas por vezes em suposições preconceituosas e relegadas a costumes, sem
qualquer embasamento bíblico; isso também esconde um comportamento legalista ou
ascético, que impõe a dureza da letra da lei para que o incauto, debaixo de uma
força normativa, venha a se calar e a acatar os mandamentos como lhe são
apresentados, sem ponderar. O mesmo comportamento legalista é aquele que provoca
a simples conclusão de que "o crente não deve julgar", contrariando João 7:24:
"Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça".
Outro texto usado pelos defensores do "não
julgar" encontra-se em Romanos 14:10: "Mas tu, por que julgas teu irmão? Ou tu,
também, por que desprezas teu irmão? Pois todos havemos de comparecer ante o
tribunal de Cristo". A solução para esse aparente problema encontra-se
justamente na segunda questão: "por que desprezas teu irmão?" Ora, se há
desprezo por parte de quem julga, então o julgamento é parcial, interesseiro.
Logo, não é justo, e não deve ser feito. O julgamento com justiça persiste,
portanto.
3. O comodismo e os perigos da
tolerância
O comportamento legalista de comandar um
"não julgamento" encerra dois perigos: o de produzir comodismo e o de tolerar o
pecado. A postura cômoda de não enfrentar uma ideia antagônica torna-se perigosa
por produzir indiferença quanto à verdade. Exalta-se a ignorância, com o
pretenso argumento de que "no dia do Juízo Deus trará a lume todas as coisas, e
que para isso não estamos preparados". Ora, Deus nos deu discernimento para
usá-lo; se não o fazemos, cometemos pecado. O fato, ademais, de não termos como
vislumbrar um julgamento futuro de todas as coisas não nos dá o direito de
ignorarmos o ensino do exercício do juízo, inclusive para assuntos relacionados
à nossa jornada nesta terra. E ainda: exercemos nesta vida propósitos e
promessas que nos são dadas por Deus, e para tanto ele dá pessoas como juízes,
inclusive para executar juízos em seu Nome. Relegar ao "etéreo" é uma forma de
escapar da realidade, um recurso ridículo diante da seriedade com que a justiça
divina deva ser levada. Por pura negligência, causada pelo comodismo, ações não
são corrigidas hoje, e com isso mais vítimas são feitas pelas obras da
injustiça.
Além disso, busca-se evitar o conflito pela
pretensa tolerância. Comportamentos, organizações e fatos têm clara omissão em
nome de uma cordialidade que não deveria existir. Deus chama os pecados pelo
nome, e assim deve ser para conosco. Não se defende a "falta de educação",
tampouco a falta de compromisso trazida pela tolerância exacerbada. Esse
comportamento esconde medo do confronto, de uma indesejável exposição, afora
outras consequências advindas de um comportamento mais ousado, desde que esteja
seguramente pautado pela Palavra de Deus. O crente deve repudiar a tolerância a
qualquer custo: por conta de não agir dessa maneira, toleram-se comportamentos
mundanos no seio da igreja, a penetração de doutrinas estranhas que dividem o
povo, a semelhança cada vez maior de cultos com shows e espetáculos produzidos
por ímpios, dentre outras características que trazem repulsa ao Senhor e serão
objeto de julgamento naquele Dia. E se somos do Senhor, devemos repudiar
exatamente as mesmas obras, sob pena de sermos julgados pecadores por conivência
ao aceitarmos conscientemente algo que Deus condena. O limite da tolerância está
naquilo que contrarie, ainda que sutilmente, os ensinamentos das Escrituras. O
pecado deve ser tratado como pecado, não como um "sentimento negativo" ou uma
"energia do mal". Erros doutrinários devem ser tratados como problemas passíveis
de eliminação da seara do Senhor. Tais ideias podem soar como "radicais", mas o
ensino de Cristo é radical! Se não fosse assim, por que a Palavra foi comparada
como espada? Jesus trouxe a espada, não a paz da falsa tolerância! Não se pode
tolerar o pecado: caso tivessem sido tolerantes, Ló e sua família jamais teriam
escapado de Sodoma.
Conclusões
Dessa maneira, podemos concluir que:
■Julgar não é um mau em si mesmo, pois a tudo
devemos examinar e reter o que é bom.
■Julgar é necessário, pois é coerente com o
discernimento que possuímos da parte de Deus.
■Julgar não é tarefa exclusiva de Deus, pois se
O imitamos, temos dele a propriedade para exercer juízo sobre todas as
coisas.
■Julgar, porém, deve ser feito sob o exercício
da justiça, para não produzir o efeito contrário.
■Julgar, ainda que contrarie o argumento da
pretensa tolerância, deve ser efetivado, pois o crente verdadeiro não concorda
com aquilo que a Bíblia chama de pecado, tampouco vem a exercer, em sua vida
particular, comportamentos que o levem a ser incluído entre os mentirosos e os
hipócritas.
■Julgar é um ato de obediência à verdade e de
amor a Deus, pois Ele é justo e ama a justiça.
Dessa maneira, que ninguém venha a condenar
o leitor na sua nobre e necessária atividade de julgar. Que isso seja feito em
plenitude, de modo justo e imparcial. Quem é de Deus não se dobrará à chantagem
de um argumento que, baseado na mentira, no egoísmo, na falsidade e na
corrupção, tenta promover exatamente o contrário da justiça: a tolerância com o
erro.
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